"Era infantil se sentir decepcionado, mas a infantilidade é uma coisa que acontece tão naturalmente a um homem quanto a uma criança..." – Asimov, Fundação.
Tantas foram as obras de ficção científica que me causaram profundo impacto como a série Fundação de Isaac Asimov em que a visão periscópica de futuro e de sociedade apresenta ainda que com ressalvas, singular esperança. Tantas, porque particularmente não resisto a uma boa ficção científica, mas essa é precipuamente a melhor delas.
Asimov!
De minha parte, gratidão por obra tão espetacular.
Ainda que me agradem particularmente na literatura contemporânea, a prosa analítica de Umberto Eco, o fantástico de Gabriel Garcia Marquez – a ficção científica clássica de Asimov, me causa um rubor de esperança. Singular esperança, tão acanhada porque os anos nos recrudescem dessa habilidade pueril de acreditar, mas que timidamente se perpetua como quando caminhamos por uma rua tomada pela escuridão e nos solilóquios que se instigam freneticamente disparados pelo medo, pelo escuro, aguardamos a luz fraca do próximo poste, ainda que a distância entre os postes seja tão irregular que caracterize impossível compreendermos um padrão.
Como em Cities in Dust (canção aguda que merece obrigatoriamente em algum momento nesse lapso espaço-tempo, um arranjo pareado num game explosivo) nossas cidades jazem em pó. Nossas estradas espaciais jazem em pó, tão lúgubre e nada matinal essa desesperança nos faz um convite rumo à passividade. Esse desassossego humano, sempre insano rumo ao desconhecido em sua ímpar experiência num ciclo de vida tão passageiro é o que nos persegue simultaneamente tanto e quanto o perseguimos.
Não se trata aqui de uma ode à ciência inabalável, metódica, pois ainda que a Crítica da Razão Pura de Kant tenha me conferido um pouco de racionalidade, devo ignorar que para Kant “toda sensação é suscetível de diminuição, de tal sorte que ela pode decrescer e desaparecer insensivelmente”. Persisto numa auto sabotagem distrativa que me permite ignorar os desvanecimentos das sensações que há tempos me causavam súbito estupor. O fato é que para mim, a ficção científica incorpora o que há de luminescente nessa amplitude vazia a que estou submetida, tal como um vestígio de luz, cuja faísca da Graça adiada, resiste! (Não, não me refiro à graça cristã ululante que berra, estampada no rosto de Teresa de Ávila de Bernini, depois de ter tido a experiência orgásmica com a seta do amor cupido-deus. Blasfêmia? Não! Definitivamente não. Teresa de Ávila era mística e eu no meu ceticismo, não a compreendo. Nem preciso! É óbvio que a questão é quanto ao uso da palavra Graça restringir-se tão somente ao ideário judaico, cristão, católico, não importa. A Grace de Lar Vons Trier me apetece mais do que a graça divina. Reside nesse conceito de Graça, do qual me aproprio, um expurgo da religião e de toda essa fé cinzenta vendida e que não se aproxima ao menos, na minha soberba e intimista opinião, à magnitude do pôr-do-sol, da aurora boreal e da singularidade das marés, ou bem mais óbvia de ser compreendida como a comoção que Hades despertou em Orpheu que decidiu por Eurídice conquistar o reino dos mortos).
A ficção científica é a prima-irmã do Iluminismo, a Graça encarnada nas páginas escritas, sonhos da razão, que em seu rastro luminoso, resiste na perspectiva de bonecos humanos de elastômero para a satisfação de desejos, resiste no braço biônico, resiste na publicidade desnecessária do Bóson de Higgs ou para os mais pessimistas como eu, resiste no borralho de ausência de humanidade ou naquela experiência louca de Playtest em Black Mirror. Essa vazão catártica de mim mesma, é o mais próximo que eu consigo chegar do enleio da Graça! Embalada numa Graça agônica à minha própria existência, minha existência se dá porquanto resisto. Resistir. Eu resisto. Todos resistimos nessa vértebra frugal que nos compele diariamente, ainda que o auto engano nos dissimule a infelicidade, nos dissimule o vazio e nos dissimule o medo de nossa finitude. Esse auto engano que me abranda dentro dos convescotes corriqueiros, nos feriados em família, nos acalantos sinceros e naquela sensação entorpecida de que tudo está exatamente onde deveria estar, quando por um tempo esqueço dessa carne que definha pouco a pouco. A ficção científica é a ciência do impalpável que se materializa na literatura de vanguarda, no futurismo da produção cinematográfica, na Arte daquilo é inatingível conceitualmente. A ficção científica nos sublima, quando assumimos nossa identidade como replicantes de nós mesmos e aguardamos tacitamente o aparecimento de um tricorder e nos projeta, quando ousamos um dia sonhar com um pulo paradoxal do tempo num universo paralelo.
É provável que essa mesma ciência do inacreditável, aquela que causa prostração diante de algo deslumbrante, que cega-nos diante de tanta incandescência, seja a que causou profundo terror aos europeus ao se depararem com civilizações tão desenvolvidas, quanto a dos ameríndios. Daí, a razão de Hernan Cortés em suas cartas sobre a conquista do México relatar com profunda naturalidade a barbárie dos crimes de guerra. “Lutaram conosco bravamente, mas quis Nosso Senhor dar tanta força aos seus que entramos pela água até o peito e fomos conquistando a vitória. Matamos mais de seis mil índios entre homens, mulheres e crianças, número que se tornou considerável em vista da ação dos índios nossos amigos, os quais, vendo como íamos conquistando a vitória, iam matando a torto e a direito. Quando chegou a noite recolhi a minha gente e pus fogo em algumas casas”. Para Cortés que sequer imaginava encontrar numa civilização supostamente primitiva, aspectos de vida inteligente, a imperceptibilidade do ouro enquanto despojo, o sol encapsulado em monumentos astronômicos cravados em rocha, erguidos com perfeição matemática é de se esperar que a única coisa que ao desbravador feroz restava, era primar pela completa dizimação do povo.
A verdade é que em tempos sombrios, (a escuridão é ainda pior que essa luz cinza! – Renato Russo) como já disse, Chine Miéville: “Nunca houve época tão boa para ser fascista”. Somos mesmos todos fascistas com as vontades alheias que sobrepujam as nossas ou nosso altruísmo consegue ser maior que nossas misérias internas? Não sei. O que sei é que o cotidiano, monstro escondido nas frestas da cidade, precipitado no noticiário da manhã, no pó que se intromete na soleira, na geladeira vazia, no painel do elevador, nos humanos com quem não escolheríamos compartilhar nossa existência se tivéssemos tal opção, nos explora... Quem é que suporta o peso dos dias? Eu não consigo mais! Agosto me empurrou ladeira abaixo num soluço doentio permanente como um cozido demorado de miúdos, intragável, nauseante como a minha própria cara esgotada, envelhecida e descoberta.
Setembro chega. Setembro chega com a Primavera e traz consigo o dia sete, Sete de Setembro.
Para mim, as opções que restam são poucas. Duas delas me comovem quase que por inteiro, esconjurar a Independência num grito ensurdecedor de desespero ou aguardar passivamente a segunda-feira que tão logo se avizinha com o prelúdio irônico da minha condição assalariada, (um queniz de trigo por um denário! Argh!) engrenagem descartável. Eu resisto. Todos resistimos. Resisto mais um dia, dois, um mês, toda uma vida! Guardo minha militância sonífera numa caixa de papel para os dias de luta que na medida da minha covardia torço para não acontecer...
Agarro-me à Asimov até dormir, acordo, vocifero contra o pote de biscoitos, fico à espreita do sol que não tarda em secar as flores amarelas caídas do Ipê que floresce tão próximo da janela das minhas tímidas esperanças tardias.
Luz verde. Duas mulheres olham apreensivas para o semáforo, a troca das luzes lhes impõe uma missão. Luz amarela. É hora de se prepararem. Enfim, agora que o círculo vermelho acende, não perdem tempo em ocupar a avenida, postam-se à frente dos carros, segurando cada qual a ponta de uma faixa. Fazem isso sem qualquer entusiasmo, há no entorno delas uma evidente aura de constrangimento, ombros caídos, languidez nos olhos. Se ainda anunciassem o sonho da casa própria, algum saldão de ofertas ou as trinta e seis prestações que possibilitem a aquisição do mais arrojado dos automóveis SUV, mas o fato é que carregam o fardo pesado de terem que alertar a todos sobre questões apocalípticas.
Você está preparado para o apocalipse? É o que está escrito na faixa. Os motoristas e os pedestres leem a interrogação e inicialmente são tomados pela reação de quem se põe a refletir, cada um vai formulando sua resposta interna, mas isso dura pouco e logo se vê que os semblantes já estão novamente tomados pela impaciência, pela pressa, pela ansiedade, não é difícil imaginar a enorme figura do relógio mental que os assombra ao piscar incessantemente avisos sobre o horário da consulta médica, sobre o horário da escola dos filhos. Antes do apocalipse, há ainda muitos compromissos e preocupações com os quais é preciso lidar.
Chinelos de dedo, calça social, camisa de linho, um senhor pedala sua bicicleta pelo canto da avenida, deixa de girar os pedais e vai diminuindo a velocidade até parar junto ao meio-fio, já faz tempo que observa o teor da faixa estendida à sua frente. Agora olha para a calçada e procura alguém que possa esclarecer uma curiosidade: vocês acreditam nisso? Sem se importar com o fato de ter sido ignorado, ele retoma as pedaladas não sem antes emitir uma declaração para se for o caso de alguém querer saber: já passei tanta coisa na vida que tudo o que vier é lucro.
Num cruzamento movimentado, o maior dos pecados é a lentidão. Por mínima que seja a percepção de que algum veículo atrasou o arranque, tem-se aí motivo para a aplicação de um castigo cruel, que é o berro uníssono de muitas trombetas infernais, se a buzina estridente é o grito dos perturbados, dos irascíveis, a cidade se tornou a orquestra da insensatez. E é em meio a esse som ambiente que as duas mulheres continuam estendendo a faixa, juntam-se a isso o calor, a poluição, a exposição, o desconforto de serem alvo de olhares zombeteiros. Pelo que tudo indica, já estão tratando de se preparar.
Eu confesso que tinha uma certa antipatia pelo maestro João Carlos Martins
Antipatia estética. Achava ele muito populista, nesta fase de maestro. Tocar com Chitãozinho e Xororó, para mim, foi o "ó"
Me parecia uma tentativa, barata, de conquistar certo público, pouco afeito às salas de concerto. Desconfio sempre quando a alta cultura tenta "se rebaixar". Alta cultura rebaixada deixa, imediatamente, de sê-lo
Com esse espírito, fui assistir ao concerto de 40 anos da Cultura FM, na Sala São Paulo, em Julho deste ano
Concerto encerrado pelo maestro que - tocando Mozart ao piano, sob regência de outro maestro, Júlio Medaglia - me comoveu
O que aconteceu? Não sei. Não foi apenas a execução, impressionante para quem tem tantos problemas nas mãos...
Talvez tenha sido porque ele relembrou que, quando resolver ser maestro, foi procurar Júlio Medaglia, e este igualmente se comoveu...
Ou talvez porque tenha sido uma noite especialmente comovente, para a Cultura FM e para a sua audiência. E João Carlos Martins soube respeitar isso. Não quis ser "a estrela"
Me comoveu tanto que, na saída, em direção ao banheiro, dei de cara com ele - e não consegui deixar de cumprimentá-lo e de reforçar o clichê (que tanto critiquei): "Parabéns, maestro, o senhor é um exemplo de vida"
Pois é. Não resisti. O maestro me pegou de jeito...
Também disse a ele que assistiria seu filme, cujo trailer já havia visto. E ele foi simpático: "Olha, no filme, sou eu quem toca tudo... Com exceção de algumas partes... que quem toca... é esta moça aqui!"
Estava com uma moça, claro. Como, aliás, tantas vezes no filme...
Apesar de superado o preconceito inicial contra o maestro, entrei meio desconfiado na sala de cinema, porque o filme era Globo Filmes. Ainda mais com um "toque" de Luiz Carlos Barreto e Cacá Diegues... (Só faltavam a Conspiração e a Natasha Records...)
E, de fato, o filme começa com aquela "sujeira limpa", típica das novelas da Globo - onde até as roupas velhas têm cara de novas (e bem passadas) e onde até a pobreza merece um rico tratamento estético
Resistindo, ainda no começo, pensei que estavam tentando transformar o João Carlos Martins, pianista, no Glenn Gould brasileiro...
Mas, aos poucos, fui sendo vencido... Primeiro, pela música
É difícil ignorar Bach no cinema. E a ligação de João Carlos Martins com Bach não é uma coisa que passa despercebida
Bach não foi um golpe de marketing, que ele usou para se lançar ou se promover, foi uma relação de vida inteira
Uma obsessão, como acusa uma de suas mulheres. Uma comichão (sim, comichão é feminino)
A Bach, ele retornava, nos piores momentos. Quando sua mão falhava, quando não conseguia tocar, quando sofria um golpe...
É com Bach que ele passa, também, os melhores momentos. Seja estudando, seja executando, seja gravando. Seja tocando as Variações Goldberg, de memória, num restaurante em Nova York, a pedido de ninguém menos que Leonard Bernstein...
Além da música, e de sua relação com ela, fui sendo conquistado pela obsessão do artista. A mesma que afastou suas mulheres
Afinal, João Carlos Martins não sofre um único acidente, mas *dois* - e leva sua carreira de performer até o limite físico
Sente dores antes do primeiro acidente, e vai perdendo o crédito na mídia em função deste. No meio de um projeto para gravar a integral de Bach, para teclado, sofre o segundo acidente
Passa a tocar no limite da dor. Até que a dor é tamanha... que ele finalmente aceita a operação. A mesma que sepulta sua carreira de pianista
Nasce o maestro
Mas nem tudo são flores. Começa a carreira de "pedinte", tão bem conhecida por quem realiza iniciativas culturais no Brasil...
Ser artista solo era muito mais barato. Para ser maestro, precisava ter orquestra...
Mas o homem que flertou com o suicídio, e poderia ter desistido tantas outras vezes, acaba conseguindo. E quando a Fiesp, através do Sesi, decide patrocinar não apenas um músico, mas a orquestra inteira, o maestro tartamudeia... e, imaginando sua emoção depois de tudo, emudecemos igualmente
No fim, João Carlos Martins, em pessoa, dá um descanso a Alexandre Nero - que está muito bem no papel - e aparece, regendo, na Sala São Paulo
Aí, eu chorei
Pois é, num filme da Globo Filmes, com um ator de novelas, cujo subtítulo é, literalmente, "uma história de paixão e de amor pela vida" - chorei, vai entender
Mas o Maestro merece
E eu fiquei com vontade de cumprimentá-lo novamente ;-)
Com um crescente som orquestrado surge um nome: Metropolis. Ele se mistura com a imagem que vai aparecendo da cidade-Babel e, em seguida, várias engrenagens fundindo-se em imagens. O som é rápido, angustiante, temeroso, como se as máquinas estivessem a nos perseguir. Surge o relógio impiedosamente girando seu ponteiro, aparecem novamente as engrenagens e o apito da fábrica soa anunciando a troca de turno.
Essa é a clássica abertura do nonagenário filme Metropolis (1927), de Fritz Lang, uma das mais importantes obras que se relacionam ao Expressionismo alemão. Importante por vários motivos conhecidos, por pertencer a esse movimento, pelo seu contexto histórico e social (a Alemanha pós-guerra, o desemprego e a inflação), por sua inovação técnica e dramática e por ser uma narrativa real e distópica, profética e consumada.
Esses elementos sempre são evocados para se falar do expressionismo e de Metropolis, o filme que mostra uma cidade futurista dividida entre os que moram confortavelmente na superfície em gigantescos prédios e aqueles que trabalham e vivem no subterrâneo, trabalhadores eternizados na sequência síntese na qual eles andam mecanicamente ao entrar e sair da fábrica.
“Os expressionistas não tinham por objetivo representar a realidade concreta. Interessavam-se mais pelas emoções e reações subjetivas que objetos e eventos suscitavam no artista e que ele tratava de ‘expressar’ por meio do amplo uso da distorção, da exageração e do simbolismo”, diz Luiz Carlos Merten em “Cinema: entre a realidade e o artifício”.
Com todas essas características, não por acaso, o movimento ficaria conhecido como um aviso, ou uma premonição, do que se seguiria na Alemanha, posteriormente, com o Nazismo.
Na edição do filme lançada em 2010, já restaurada com o acréscimo de 30 minutos, há uma cena na qual, dentro de uma casa, elevadores sobem e descem, como cápsulas, e nos quais o habitante deve entrar para seguir o seu destino.
É uma cena aparentemente simples, mas ela pode muito bem ser pensada como um fragmento de uma sociedade na qual o indivíduo é parte de um sistema mecanizado que o condiciona como elemento orgânico, substituível, da cidade.
Em uma pequena nota de rodapé, Deleuze (1925-1995), em A imagem-tempo, faria alusão a essa relação entre massa e indivíduo nas formas estéticas, como teatro, cinema e ópera.
Diz Deleuze: “O teatro e a ópera se deparavam com o seguinte problema: como evitar reduzir a multidão a uma massa compacta e anônima, mas também a um conjunto de átomos individuais? Piscator, no teatro, impunha às multidões um tratamento arquitetural e geométrico que o cinema expressionista, e Fritz Lang, em especial, também adotará: é o caso das organizações retangulares, triangulares ou piramidais de ‘Metropolis’, só que é uma multidão de escravos”.
Não, não podemos ver unicamente essa relação como uma arquitetura maniqueísta, lembrando Freder (par de Maria) que vê Moloc, o deus, monstro-máquina, a devorar as pessoas. Mas, caminhando para o final do filme, desponta a cena na qual Freder alucinado vê a morte, o ceifeiro, a carregar a foice em sua direção. As plaquetas anunciam: “A morte desce sobre a cidade”.
A cidade então parece caminhar, inevitavelmente para o apocalipse, para o caos. Como aquela Metropolis tão sistematicamente organizada, arquitetonicamente erigida, sucumbe, justamente às maquinas que lhes construíram e aos homens que lhes sustêm, é o cerne dessa narrativa.
Não se trata de ver, hoje, uma luta, recorrente no cinema, entre homem e máquina. Mas trata-se de observar como a cidade surge como templo, em adoração e castigo. Continuamos a erguer uma maquinaria da qual nos glorificamos e com a qual nos sentimos, cada vez mais, impotentes e, antiteticamente, dominadores.
As cidades não são mais unicamente separadas entre espaços que não se relacionam, mas isso não diminuiu o caótico sentimento de que delas não pertencemos inteiramente. De que nosso mecânico caminhar, como autômatos a olhar para máquinas que agora portamos, permanece contido em uma ideia de que sempre, a cada passo, contraditoriamente, podemos nos libertar.
Isso também é um tipo de alucinação/fascinação na grande metrópole, mas colocamos uma película, uma tela, entre a urbe e nós e, resignados, como no final do filme – repudiado por Lang –, podemos até nos dar as mãos e seguir.
Relivaldo Pinho é pesquisador e professor.
Texto publicado em O Liberal, 05 de setembro de 2017, p. 2.
No cruzamento da grande Avenida, a visão de um par de tênis enroscado nos fios de alta tensão, chamou a atenção de Nietzsche.
Seus dedos finos se perderam entre o colossal bigode.
A lua refletiu seu rosto mostrando um sorriso que considero ingênuo, mas sei, dentro daquele corpo magro, atrás dos bigodes medonhos, repousa uma fera.
De repente, pergunta: “Consegue ouvir o barulho dos coveiros enterrando Deus?
Finjo que não o compreendo, formo dúvidas na testa, já não sei se ele está falando em português ou se sou eu que compreendo alemão.
Ele insiste: “Gott ist tot! ”“. Ah, meu bom amigo, você não contava com a fé cega dos incautos! - respondo e o fantasma de Nietzsche sorri.
Depois completa, armado numa voz baixa e rouca: “Quando disse Deus, me referia ao homem” ele responde afinal, colocando fim às minhas dúvidas.
Certo é que esse meu amigo sempre teve a vocação dos abismos.
Chegamos enfim à feira central.
Ele assovia “The boxer” do Simon and Garfunkel.
Firmei meus olhos naquele corpo magro no qual se destaca o pomposo bigode.
“Não há fatos eternos, como não há verdades absolutas” ele diz, me arrancando um suspiro.
Depois dá de ombros e cumprimenta todos os garçons que se postam na frente das barracas armados com cardápios coloridos.
Mas eles não o enxergam.
De repente faz o par de sobrancelhas dançar na testa: “como esvaziamos o mar? Como apagamos o horizonte?” Ele pergunta e não sei responder.
Oh senhores do destino, porque não me enviaram Fernando Pessoa?
Uma senhora cruza o nosso caminho armada num rosto de espanto, como se fosse a única a enxergar o fantasma ao meu lado.
A mortalidade de nós humanos estava escancarada no rosto daquela mulher.
A cadeira da banca me aperta, faz lembrar que estou num processo irreversível de obesidade.
Nietzsche não tem esse problema, se encaixa perfeitamente entre o banco e a mesa, faz um sinal em minha direção e sei que quer comer sobá.
Quando a comida chega, seus olhos brilham e ele come com voracidade - a cena do macarrão triturado na boca pequena, avançando sem limites entre os bigodes espessos, jamais haverei de esquecer -.
Acho que Nietzsche, ao menos depois de morto, deveria raspar aquele bigode ridículo.
“Humanos, somos demasiado humanos” afirmou entre uma garfada e outra.
Depois que se fartou, saímos caminhando pela feira.
Seus olhos atentos registravam tudo, quis saber como é que um bolo pode ser chamado de sopa; contei que era coisa dos paraguaios e ele quis saber quem eram os paraguaios.
Um trio armado de harpa, sanfona e viola, no canto final da feira, me salvou e ouvimos, encantados, os acordes e a voz maviosa do senhor grisalho ao centro: “Que dulce encanto tienen tus recuerdos mercedita, aromada florecita, amor mio de una vez...” e meu amigo ficou tão encantado que de seus olhos gotejaram duas pontas de lágrimas: “e aqueles que foram vistos dançando, foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música”.
Caminhamos mais um pouco.
Logo se deteve diante de uma garrafa de cachaça exposta num balcão do corredor. “vamos beber” ele disse.
Nem quis lhe contar daquela bebida, tão forte que queimava a garganta, sabedor que meu amigo bebia litros de absinto quando era vivo.
Depois do susto inicial, bebeu mais três ou quatro goles e seus olhos ficaram vermelhos.
Na saída, uma chuva fina compunha o ritual de despedida.
Acompanhei seus passos indo se perder no brilho fosco dos trilhos mortos, desaparecendo aos poucos no poço ao centro da rotunda.
E lá se foi, feliz, e eu fiquei esfregando os olhos com as duas mãos, absorto na imagem final daquele indecifrável delírio.
Naquele fim de tarde de um dia frio, Horácio decidiu que havia chegado o momento de trair.
O casamento de sete anos com Nair já estava desgastado e ele sofria horrores com fantasias sexuais: comia todo mundo; a mulher do vigia, a secretária gorda dos dentes falhos, a mãe de um amigo, a menina magra, completamente sem bunda, que vendia buquê de flores no sinal fechado.
Sentia remorso, jamais duvidou da fidelidade de Nair.
Quando dormia, sonhava que era o jovem de antes, de vinte e poucos anos, tão belo, tão saudável.
E, novamente, comia todo mundo; as que realmente conquistou, as que deixou escapar, algumas inexistentes, estrelas da TV e do cinema e até uma freirinha linda dos olhos azuis que conheceu quando ainda eram crianças.
Não aguentava mais o desespero.
Optou por marcar encontro com uma mulher que conheceu através de um site de relacionamentos.
Seu perfil era claro: "procura sexo casual".
O nome da moça, Carmem, despertou-lhe antigos desejos no simples lembrar da dona do puteiro mais famoso da cidade, uma paraguaia dos cabelos negros como a noite, longos até a cintura e dona da boca borrada de batom dum intenso vermelho, a quem ele sempre sentiu atração, mas o receio de frequentar um lugar daqueles, o fez recuar.
Antes de sair do consultório, sentiu um frio na barriga e uma última fagulha de arrependimento.
Ligou para a esposa:
- Filinha, faz aquele bife acebolado que hoje vou trabalhar até mais tarde...
Nair respondeu com a habitual cortesia, prometendo, além do bife, uma saborosa polenta.
Os ponteiros do relógio demoravam a passar mas Horácio não pensou em desistir.
Quando enfim fechou o consultório, acenou brevemente para a secretária gorda dos dentes falhos e ela sequer lhe respondeu.
Girou a chave de ignição do carro e partiu para a aventura.
Não tardou a identificar Carmem, debruçada no canto esquerdo do balcão do bar.
Ela tinha os olhos puxados e claros, os cabelos tingidos de loiros, a boca pequena, porém carnuda e um belo par de pernas.
Horácio sempre gostou mais de pernas. Trocaram palavras rápidas, conforme combinado no site de relacionamentos, beberam juntos e numa só golada o copo ao meio de conhaque.
Poucas palavras durante o caminho até o motel. Horácio percebeu que somente o nome e o intenso batom vermelho borrado na boca combinavam com a dona do puteiro de outrora.
A Carmem diante dele era mais nova e (imaginou) mais fogosa, desde que entrou no carro, não parava de alisar suas pernas, os joelhos, tudo o mais...
E fizeram de tudo no quarto.
Carmem beijou Horácio como se ele fosse o único homem do mundo.
Ele devolveu todos os carinhos, na mesma intensidade.
Quando enfim saciados, cada um caiu para um lado da cama, exaustos.
Um cheiro forte de morango permanecia invadindo o nariz de Horácio.
Ele caminhou até o banheiro e sorriu ao verificar sua boca suja de batom.
Tentou limpar com papel higiênico.
Nada, o batom permanecia intacto.
Lavou com água e sabão líquido.
Sem efeito.
Um leve desespero percorreu sua espinha, trazendo a imagem cândida de Nair fritando os bifes. Resolveu pedir socorro a Carmem:
- Filinha, esse batom não quer sair da minha boca.
Ela o encarou como quem encara um fantasma:
- Ihhhhh...Esse meu batom é mesmo ruim de sair...
- Mas você deve passar alguma coisa, um líquido que retire...
- Não...Eu só uso esse...Vou retocando todos os dias pela manhã, ele prega mesmo na boca.
Horácio podia sentir o cheiro do bife e também os olhos de Nair pairando por cima da sua boca suja de batom.
O desespero bateu de vez.
Chacoalhou Carmem pelos ombros:
- O quê nós vamos fazer agora?
Ela sorriu, ligeiramente maliciosa:
- Você eu não sei...Eu uso batom desde os quatorze anos, quase nunca estou sem...
- Filinha, você tem que me ajudar!
- Ah cara, sei lá, tenta passar álcool.
Ele então jogou no rosto o tanto que coube de uisque nas mãos feitas em concha.
Esfregou com força, para cima, para baixo, para os lados.
Tudo o que conseguiu foi espalhar ainda mais o batom no rosto. Saíram do motel às pressas.
Procuraram uma farmácia.
O atendente, um senhor calvo e de óculos fundo de garrafa, não percebeu a mancha, mas entendeu o pedido.
Afirmou que tinha um removedor de manchas infalível. Horácio sorriu ao mesmo tempo em que pedia para ocupar o banheiro da farmácia na intenção de usar imediatamente o removedor.
Olhou antes para o espelho, suspirou num pequeno alívio e lambuzou o rosto com o removedor.
A ardência o fez recuar ligeiramente e tapou o grito que lhe veio à garganta ao perceber que o único efeito que conseguiu foi mudar a cor do batom, agora mais claro, do vermelho ao rosa, com tons azulados nas extremidades.
Carmem se mostrou impaciente:
- Desculpe, mas o problema é seu. Preciso ir embora, meu marido chega amanhã de viagem e...
Horácio não permitiu que concluísse, armando no rosto rebocado de batom uma veia pulsante de ira,
– Filinha, você disse que era solteira!
Ela sorriu um tanto desajeitada:
- Sou casada desde os 16 anos...Mas meu marido é caminhoneiro, vive viajando, então é como se eu fosse solteira.
Horacio juntou as duas mãos em torno da cabeça, inconformado.
– Seu marido é caminhoneiro? Nós transamos sem camisinha, entende como isso é terrível, filinha?
- Você que não quis usar...
- Porque pensei que você fosse pura.
- Pura? Como assim?
- Não digo virgem, mas com pouca rodagem...
Ela fez um esforço para conseguir arregalar os olhos puxados:
- Olha aqui, meu senhor, eu sou uma mulher limpa, de poucos homens!
- Quantos?
- Menos de trinta.
- O quê? Trinta?
Ela balançou a cabeça, nervosa,
- Não contei os pintos, acho que a média é essa.
- De todos, certamente eu fui o único que não usou camisinha.
Carmem esboçou um riso falso e um leve balançar de cabeça.
- Talvez...Bom, eu...
Horácio sentiu um arrepio percorrer o corpo todo.
- Mas o pior de tudo é o caminhoneiro.
Ela colocou o dedo indicador nos lábios, se fazendo ingênua:
- O que isso tem a ver com o meu marido ser caminhoneiro?
Um longo risco de suor escorreu pela testa de Horácio:
- Filinha, caminhoneiro come tudo o que encontra pelo caminho, até travesti!
Carmem postou com firmeza as duas mãos na cintura, enfezada:
- Olha aqui, meu senhor, meu marido é um homem honesto e trabalhador, fique sabendo! Enxugando o resto de suor da testa, Horácio preferiu se livrar de um problema de cada vez. Além do batom borrado no rosto, agora carregava a preocupação de uma doença venérea. Abriu a carteira e dela retirou cinqüenta reais.
– Pegue um táxi e vá embora.
Carmem balançou a cabeça:
- Cinquenta reais não vai dar, moro na Moreninha 3.
– O quê? No site você diz que mora na vila Planalto.
Ela balançou a cabeça:
- Trabalhava lá...Quando era doméstica, mas agora estou sem trabalhar e...
– Ok, ok, de quantos você precisa?
– Cem reais...
– O quê? Cem reais?
Ela sorriu diante do desespero do companheiro de aventuras.
– Você não pensou que ia foder de graça, né? Vou pagar o táxi e no caminho comprar um vinho forqueta, duzentas gramas de mortadela e pão. Preciso reabastecer minhas energias. Amanhã tem mais...
Horácio arregalou os olhos:
- Escuta aqui filinha, por acaso você é puta?
Foi a vez de Carmem formar na testa modos de ira:
- Olha, o senhor me respeita! Aceitei transar numa boa, não exigi nada, fizemos um monte de coisas na cama, coisa que não faço nem com o meu marido, então o senhor me respeita, eu nunca fui puta nessa puta vida.
Horácio deixou o ombro cair.
– Desculpe, desculpe, não quis ofendê-la. Tome aqui os cem reais.
Ela apanhou o dinheiro na ânsia dos desesperados. Depois tentou fazer um carinho ao limpar com os dedos molhados de saliva a marca de batom no rosto de Horácio.
– Tadinho...Tenta gasolina. –
Oi? O quê você disse?
Perguntou completamente abraçado pela surpresa.
Ela ameaçou um sorriso:
- Acho que só sai com gasolina...
Antes que Horácio pudesse responder, Carmem ajeitou o vestido e tocou os lábios com a ponta do dedo num gesto de adeus.
Assim que começou a caminhar, ainda teve tempo de ouvir a última pergunta de Horácio:
- Não vai chamar o táxi?
- Vou...Na outra esquina deve ter...
E o mundo desabou na cabeça do traidor, combinando com o som de um trovão que explodiu num céu ali perto, clareando a noite.
Caminhou até o carro, estacionado há dois quarteirões, mas olhando ligeiro, parecia vários quilômetros.
O celular não parava de vibrar e ele resolveu dar uma conferida.
Sete mensagens de Nair.
Horácio respirou fundo e usando o resto de calma, leu uma a uma.
Todas as mensagens falavam da preocupação com a demora, o receio que “algo ruim” tivesse acontecido ao marido.
E carregava ainda a preocupação de esposa recatada e do lar: “Venha logo, só vou passar os bifes quando você chegar”.
A dor do remorso fura fundo o peito.
Danou a conversar sozinho, espantando os transeuntes.
- Nair não merece isso, eu sou um patife, um canalha!
O rosto da esposa cavalgava em sua mente, momentos bons que juntos passaram desfilavam a cada segundo, viu de perto o precipício e o cheiro do inferno tinha o sabor de morango.
- Ela nunca irá me perdoar... – pensava a cada passo dado, imaginando todas as virtudes de Nair, a mulher que abandonou uma próspera carreira no ramo imobiliário para se casar com ele, aquele merdinha cheio de maus costumes, um sem noção presunçoso que se referia a todas as mulheres pela mesma palavra: “filinha”.
Até isso Nair aceitou sem reclamar.
Permitia que ele lhe chamasse sempre de filinha, assim como a todas as outras mulheres que conhecia.
“Uma mulher exemplar!” – suspirou ao pensar que ultimamente haviam desistido de ter filhos e as noites de sexo foram reduzidas a quase nada, quando muito, uma vez ao mês.
Nair ficava em casa imaginando pratos, uma comida especial, algo bem apetitoso para compensar o dia certamente difícil do marido, isso sem se esquecer de manter as latinhas de cerveja sempre bem gelada.
Que ideia estúpida aquela da traição.
Maldita hora que acessou o computador e encontrou aquele site de relacionamentos.
Suspirou novamente ao pensar que os poucos minutos de prazer em nada se comparava com aquele total desespero.
Descobriu, de peito aberto, que havia algo muito pior que a tão decantada marca de batom na cueca.
A cara dele estava no lugar da cueca, lisa, límpida, ligeiramente oleosa e completamente entregue naquela cor rosa misturada com riscos azuis.
- Vou processar o fabricante. – Pensou, tentando alguma forma de alívio
Ligou o motor do carro, acelerou sem sair do lugar.
O quê dizer para Nair?
Passou a imaginar várias hipóteses:
Entrar num boteco, beber o bastante até provocar uma briga na qual levaria um merecido soco na cara, que certamente ficaria num tom róseo misturado com azul...
Não...um murro causa dor, deixa seqüelas...
Talvez se fantasiar de papai Noel e dizer que estava ensaiando para as festas do final do ano da empresa e, descuidado, não percebeu que esqueceu de trocar de roupa.
Imaginou até uma fala:
- Você acredita, filinha, que as pessoas me olhavam no trânsito e eu pensei que estavam me achando bonito?
Não...Tal recurso necessitava uma boa atuação e também do figurino de papai Noel que não tinha.
- Maldita a hora que abandonei aquele curso de teatro...
Acelerou levemente. O dedo tocava ligeiro no volante do carro na tentativa de espantar o nervosismo.
Novas idéias surgiam:
Quem sabe desaparecer por uns dias, até o batom sair de vez do rosto e no retorno contar histórias mirabolantes de discos-voadores, abdução, coisas do gênero.
Não...Mentira longa demais.
Contou as horas no relógio, a madrugada estava por vir e ele ainda imaginava desculpas: Quem sabe colasse uma história bonita de visita a um hospital, no qual abraçou alguém sofrendo de uma doença contagiosa, cujo sintoma principal era aquele rastro róseo cheirando a morango na cara, mas, que bobagem filinha, logo sairia e o importante fora o gesto de caridade humana.
- Não...Filinha sabe que nunca fui solidário com porra nenhuma...Que merda, ela sabe que detesto hospital e evito gente doente.
De repente, um estalo:
- E se eu falar que fui pegar a filha de um amigo no colo e a desgraçada da criança tinha a boca abarrotada de batom...
- Não...Detesto crianças, filinha sabe.
O jeito era apagar aquela maldita marca na cara, convenceu-se por final.
Acelerou o carro num sinal amarelo e logo à frente avistou um posto de gasolina.
A sugestão de Carmem agora não lhe parecia tão sem sentido.
Gasolina poderia resolver.
Se não desse certo, usaria creolina, querosene misturada com Q-boa, qualquer coisa que lhe tirasse do rosto a marca da traição.
O frentista bateu no vidro do carro:
- pois não?
– Coloca cem reais...Mas preciso de uma golada nas mãos.
– Oi, como é, senhor?
– Preciso de um pouco nas mãos.
O frentista era um homem enorme e de poucas palavras, daqueles parecidos a uma máquina, poucas palavras, breves atitudes.
Completou o tanque e deixou um resto na bomba, que esparramou pelas mãos ligeiramente trêmulas de Horácio.
Fez que não reparasse quando o cliente esfregou o rosto com a gasolina fazendo movimentos frenéticos.
Depois correu até o espelho do carro e vociferou:
- Merda, não sai! Me dê mais um pouco.
O frentista homem-máquina obedeceu sem reclamar.
Horácio esfregou novamente, correu até o espelho do carro e quase chorou.
A marca persistia intacta.
O frentista homem-máquina percebeu o motivo de tanta angustia, chegou a sentir a mesma dor, naquela de obedecer a regra pré estabelecida desde os tempos de Adão: todo homem ajuda o outro em situações como aquela. Resolveu por dar uma sugestão:
- Quem sabe se eu der uma esguichada diretamente no local, a força do jato, quem sabe tira.
Horácio topou sem muito pensar, encheu de ar a bochecha e se ajoelhou.
O frentista homem-máquina fez mira e lançou um jato, dois, três.
- Está saindo? – perguntou Horácio,numa voz alterada pelo desespero.
- Não...Precisa de mais – respondeu o frentista, já com o rosto suado, como se apertasse o gatilho de uma metralhadora.
- Então capricha nessa porra! Gritou Horácio, mas ao fazê-lo abriu demais a boca e levou uma esguichada de gasolina que lhe atravessou a garganta...
- Puta que pariu! Que mais me falta acontecer?
Tentou cuspir, mas acabou vomitando, sujando a camisa.
- Agora terei que explicar a camisa vomitada também...Disse, olhando com tristeza para o frentista, também com os olhos caídos de desapontamento.
Horácio soltou um arroto prolongado e dolorido, daqueles que só quem já bebeu gasolina pode entender...
Depois entrou no carro, ligou a ignição e arrotou novamente.
Não tinha mais nada a fazer.
Seguiu para casa.
Nair o recebeu de camisola, lenço na cabeça de cabelos presos a bobes e um sorriso que logo desfez.
Imediatamente percebeu o batom escorrido nos cantos da boca.
Rosa com fundo azul, sabor morango.
- Posso saber o que é isso?
Horácio pensou nas desculpas que antes imaginou.
Tirando a abdução, as outras ainda cabiam.
Mas não teve forças.
A noite tinha sido longa e o cansaço o dominou.
Resolveu se entregar:
- Eu...Bom...Esse batom...você sabe.
- Não, eu não sei. Mas quero ouvir.
Ele arrotou gasolina antes, esfregou os olhos em busca de lágrimas e descarregou tudo de uma vez:
- Eu te traí, Nair.
Foi isso o que aconteceu.
Estava sentindo muita falta de sexo, sabe?
Mas não o nosso costumeiro papai e mamãe, eu queria pegar uma mulher diferente, que se entregasse de todas as formas, em todas as posições, deitada, de lado, de quatro, em pé...
Eu queria ouvir outro gemido.
Queria cheirar outro cheiro.
Explodir num orgasmo dentro de outro corpo.
Errei, eu sei.
Sei também que não tem volta, só quero saber se você pode me perdoar.
Ela olhou primeiro com chispas de ódio.
Mas logo depois arrefeceu:
- Estamos quites.
- Como é?
- É isso mesmo, Horácio. Eu também te traí. Estamos quites.
O rosto de Horácio empalideceu num tom intensamente rosa, praticamente cobrindo a mancha do batom.
- Mas como assim, filinha?
- Você acha que é fácil ficar o dia todo presa dentro de casa, olhando para as paredes sem ter o que fazer?
Mulher também sente prazer, Horácio.
Muitas vezes fantasiamos e fica nisso, mas às vezes não dá para segurar.
- Com quem...
- Não vou dizer.
E deu voltas nos calcanhares, indo parar na cozinha.
Ele pensou segui-la, mas a surpresa lhe prendeu no assoalho.
De dentro da cozinha, Nair, calma e refeita, gritou para Horácio:
- Como quer o seu bife?
- Hein?
- Bem passado ou mal passado?
Horácio esfregou pela última vez a marca do batom no rosto e logo depois tentou abafar com as mãos um arroto forte, do gosto misturado de gasolina com batom sabor de morango.
O Janot queria se posicionar de isentão, e armou uma delação unilateral contra a gangue do Temer. O açougueiro gostou da ideia de proteger seu patrono Lula, e o Facchin aceitou a delação parcial, por uma mistura de indignação, ingenuidade, e parcialidade. O delator se sentiu tão à vontade e certo da impunidade que gravou a si próprio contradizendo a delação e implicando a orcrim do Lula. O Janot não teve outro caminho que fazer o resto da denúncia.
Totalmente fulanizado, "O" sicrano, "O" beltrano, mas política agora está só nisso. Dúvida: o $ do Geddel era o troco do roubo enquanto ministro durante o governo Temer, durante o governo Dilma, ou durante o governo Lula? Isso nunca se vai saber, $ não tem cheiro.
Assim Como Os Antepassados Constatavam Premonições Nas vísceras Dos animais, Na Câmara Escura Da bexiga Persistem Os Oráculos Onde Através Da Acrílica Acidez Da urina Fosforescentes Sonhos Nos São Revelados
- mamíferamente eternos -
II
Ata-me com abraços.
Ata-me ao cheiro da tua pele.
E aos teus mais íntimos segredos.
Não te quero em minha vida
pai de filhos e provedor do lar.
Trabalhar me faz bem.
Liberdade? Ainda mais!
Aprecio delicadeza
e fidalguia masculinas:
“La non-demande en mariage”.
Te lembras de Brassens nos anos 1970?
Ata-me a esta canção que rememoro ao desejar,
na vida e na arte, como o fez o poeta,
fidelidade ao amor.
Ao sobrenome registrado em cartório
prefiro a fragilidade do pleno sentimento.
Repete para mim os versos desse autor:
“A la dame de mes pensées
Toujours je pense.”
Ata-me com tua presença
em minha cama.
Assim te espero.
III
Ata-me à tua chegada porque queres voltar.
Fala comigo de igual para igual.
Ata-me ao teu falo.
Não te desejo pastor de ovelhas
tirando sons da flauta de Pã.
Nem te desejo noivo prometido,
preso a antigos acordos de família.
Não almejo na casa enfeites de louros
e oliveiras, ambientando banquete nupcial
onde devo permanecer de rosto coberto.
Nessa tal festa não havida, dispensei
a mesa de iguarias.
Bolos de gergelim, mel e frutos
podemos comer o ano inteiro.
Entanto, louvo nas hetairas
o saber e o corpo livre.
E louvo o libertário canto de Safo:
“Eros, o que desce dos céus,
envolto em purpúrea clâmide (...).”
Ata-me às tuas roupas.
Ata-me com teu suor.
Ata-me à tua nudez.
Assim te desejo.
IV
Ata-me com tua presença.
Telefona pra mim sempre que possível.
Ata-me com tua voz dizendo meu nome.
Onde nasci, não me chamaram de primeira,
nem de segunda menina. Sempre tive nome
e sobrenome. E tenho garra para saber
e dizer o que quero. Ou o que não quero.
Aprecio flores do campo.
Colares de sementes.
E gosto de andar descalça.
Prefiro objetos de terracota às porcelanas.
Dos antigos casamentos chineses,
agrada-me apenas o vermelho das roupas.
Ah, aprecio também infusão de jasmins!
Mas nunca servirei chá aos sogros
como sinal de submissão.
Como numa praça de touros,
entre desejo e cópula,
minha carne trêmula
te recebe em festa.
Fala comigo.
Ata-me à tua presença.
Sempre.
V
Ata-me à tua carne desejante.
Ata-me às oscilações do verbo.
E ao tremor do silêncio.
Às traduções da palavra “amor”,
me afasto das paráfrases porque tal sentimento,
na fala ou nos escritos, jamais eclode pleno.
Deslizantes no filme, as imagens
retêm no instante a paixão em foco.
Carmim é o nome do sangue.
Carmim é o gosto da romã.
Com as cores do apaixonado,
visto-me para os matizes do amor.
Ata-me! Na cama de Almodóvar
minhas sementes gritam ao cio.
Em total obediência, ata-me
o matador.
Sua adaga perfura-me o coração.
Sangramos ao jorro do gozo.
(Do livro Não sei se vou te amar. São Paulo: Scortecci, 2016)